Como o futebol inglês foi do ápice das tragédias a referência no combate à violência no futebol
Por: Hugo Fralodeo
Ônibus do Bahia é atingido por artefatos explosivos e dois jogadores ficam feridos.
Delegação do Náutico é atingida por objetos que foram jogados contra a van que transportava os atletas do clube pernambucano.
Na chegada ao Beira Rio, ônibus da delegação do Grêmio é atacado por pedradas, jogadores são feridos e o clássico gaúcho é suspenso.
Na Vila Capanema, em Curitiba, inúmeros indivíduos invadem o campo com o jogo ainda em andamento, na tentativa de agredir os atletas do Paraná, que estavam sendo rebaixados para a segunda divisão do campeonato paranaense.
Em briga generalizada no México durante partida entre Atlas e Querétaro, são registradas cenas brutais de brigas e pelo menos 26 pessoas se feriram no confronto, três delas internadas em estado crítico.
Após clássico entre São Paulo e Corinthians, infratores uniformizados com as camisas dos dois clubes brigam em estação de trem e 4 envolvidos forão conduzidos à delegacia.
Horas antes do Atlético vencer o Cruzeiro, pelo menos três brigas em Belo Horizonte foram registradas, deixando duas pessoas baleadas. Uma delas, um jovem de apenas 25 anos, não resistiu aos ferimentos e faleceu ainda no domingo.
Para qualquer pessoa que ama o futebol, sobretudo, seu clube de coração, ver o nome da instituição para qual você vive sair das páginas esportivas para as policiais, tira um pouco mais do resto de inocência que se permitia e mata um pouco de sua alma. Não, a frase não é para ter efeito, não é forte por ser forte, não é um exagero. A cada vez que um soco é dado, uma pedra atirada, uma bala disparada (!) e um corpo vai no chão “em nome do seu clube”, o futebol morre um pouco, seu coração chora e sua alma escurece. O grande problema é que isso já não choca mais como deveria impactar, a violência em nome do futebol está normalizada e banalizada. Vidas perdidas por conta de idiotas, são apenas mais uma manchete, até a próxima manchete.
Não deveria ser assim. Há um lugar – na verdade, alguns lugares – em que a violência não é uma mera fatalidade e/ou um erro de percurso. Há um lugar onde a violência no futebol choca porquê não é mais comum, choca por ser combatida e vencida.
Há 36 anos, todos os clubes ingleses foram excluídos por 5 temporadas das competições organizaras pela UEFA. O motivo? A morte de 39 torcedores da Juventus e mais de 600 pessoas feridas em confronto com hooligans da torcida do Liverpool, em um jogo da Champions League da temporada 84/85, disputado no Heysel, em Bruxelas, na Bélgica no dia 29 de maio de 1985. Em resumo, hooligans torcedores do Liverpool atacaram os italianos em um setor de torcida mista, causando a asfixia de torcedores que foram esmagados contra um muro que desabou.
A Inglaterra via o futebol do país se mergulhar na violência, ser marcado por desastres e tragédias, com os hooligans tomando as ruas, os estádios, os arredores, as arquibancadas e o próprio campo de jogo. Os jogos eram apenas um detalhe, o que importava no futebol inglês na década de 80, era a pancadaria e os ingleses espalhavam isso pela Europa. Algo precisava ser feito.
O MARCO ZERO
A partir do massacre, o estádio de Heysel foi pioneiro e mudou os parâmetros do futebol mundial, quando reduziu sua capacidade de 65 para 48 mil lugares, pela primeira vez estabelecendo a exigência para que os torcedores assistissem aos 90 minutos sentados. Além da diminuição da capacidade, a Federação Belga implementou a divisão entre torcidas, colocando divisórias em todos os setores do estádio, instalou câmeras de segurança e um novo sistema de abertura do estádio, aumentado consideravelmente a segurança e controle no acesso de torcedores. A partir da reforma do Heysel, todos os estádios belgas foram obrigados a se adequarem à nova realidade, adaptando seus estádios, em obras que ultrapassaram os 50 milhões de euros (quantia exorbitante para a época). Ações hoje que são comuns na maioria dos estádios do mundo.
Mas não foi apenas na estrutura dos estádios que Helsey influenciou. A partir do Marco zero, a tragédia que foi transmitida ao vivo para cerca de 400 milhões de espectadores, além do impacto e o medo, trouxe poder para as autoridades, que estavam autorizados a prender qualquer torcedor que fosse considerado uma ameaça à segurança dos demais além de instaurar uma força cooperativa de troca de informações entre a inteligência policial de diversos países da Europa, a fim de identificar e combater os potenciais riscos para o futebol e a sociedade.
O futebol deixou de ser um mundo à parte. Pelo menos na Europa. Infelizmente, exceto na Inglaterra.
A TRAGÉDIA DE HILLSBOROUGH
A pressão ainda era enorme e a então primeira-ministra do Reino Unida, Margareth Tatcher, ordenou forte repressão policial e o isolamento dos hooligans e foram instaladas cercas eletrificadas – que nunca foram ligadas – nos estádios ingleses, com a ideia de reprimir a violência. Os torcedores se sentiam enjaulados e as ações tiveram o efeito contrário, a situação se tornava insustentável, quando um dos piores dias da história do futebol inglês aconteceu.
No dia 15 de abril de 1989, quando Liverpool e Nottingham Forrest definiriam uma vaga na final da FA Cup, no estádio de Hillsborough (um dos estádios a sediar a Copa do Mundo em 66), as grades que separavam a torcida do gramado, as mesmas grades que foram instaladas com a ideia de dar mais segurança aos próprios torcedores, viraram armadilhas diante da superlotação no estádio, matando esmagados 96 torcedores do Liverpool e deixando mais cerca de 700 feridos.
O mesmo Liverpool, mais uma tragédia, mais 96 vidas perdidas. Diversas falhas, contradições e apenas uma certeza: o futebol na Inglaterra precisava mudar, ou acabaria.
No relatório do juiz Peter Murray Taylor, fechado em janeiro do ano seguinte, além de apontar que a qualidade dos estádios era determinante para evitar novas tragédias, associou diretamente a violência como o principal fator para as mortes nos estádios:
“O futebol é o esporte nacional. Nós o demos ao mundo. Mas sua imagem dentro do nosso país foi muito manchada.”
O PAÍS MAIS VIOLENTO DO MUNDO DO FUTEBOL VOLTOU A SER O APENAS O PAÍS DO FUTEBOL
Desde a tragédia de Hillsborough, mais de 30 novos estádios foram construídos e mais de uma centena reformados para se adequarem ao futebol moderno. Com o advento da Premier League, todos os estádios da Premier League e da Championship (2ª divisão), passaram a ter assentos para todos os torcedores. Mas, como era nítido, o luxo pelo luxo não traria a mudança necessária para o retorno da civilidade. A mudança precisava ser na mentalidade.
Uma política de prevenção foi adotada. Ao invés de combater a violência durante ou depois de ter acontecido, a polícia passou a conter e tentar identificar os criminosos antes deles se envolverem nas confusões. Então, os combates entre hooligans e polícia, foram substituídos pela prevenção e o trabalho intensivo de inteligência. Os clubes das duas principais divisões foram obrigados a instalarem sistemas de monitoramento e identificação em seus estádios. Assim que um hooligan é identificado, ele é retirado do estádio. Além do constante monitoramento, um oficial foi destacado para observar o comportamento dos torcedores de cada um dos clubes ingleses, funcionando como um ‘antropólogo’, que estuda as ações prévias de um determinado ‘povo’, para tentar antever como ele continuará se comportando.
Entretanto, não foi apenas o combate, a prevenção e a modernização que tiraram os estádios ingleses da lama e contribuíram para levar a Premier League ao topo das ligas do mundo, o peso da lei e sua execução, criaram uma nova cultura entre os torcedores. Nos campos ingleses, um torcedor que é pego brigando – além de sanções penais cabíveis -, que invade o campo, ou comete qualquer ato criminoso que vai contra o que é condizente com a vida em sociedade, é detido, processado e pode receber uma Ordem de Banimento do Futebol (FBO na sigla em inglês), podendo ser banido dos estádios ingleses de três a dez anos, a depender da gravidade de seu ato, inclusive, podendo ser banido para sempre de jogos do seu time, em qualquer estádio do mundo: Para garantir o cumprimento da pena, o indivíduo é conduzido a uma delegacia, onde é obrigado a permanecer por todo o período do jogo de seu time. Quando a seleção inglesa joga fora da Inglaterra, este torcedor deve entregar seu passaporte cinco dias antes do jogo. Caso as regras não sejam cumpridas, prisão prevista em lei.
E NO BRASIL?
A violência no Brasil não está presente apenas no futebol. A violência no Brasil é quase cultural e praticamente, como disse anteriormente, normalizada na nossa sociedade. Não somos mais capazes de nos chocar com a violência noticiada dia após dia no nosso país. Filhos matando pais, pais matando suas crianças, amigos matando amigos, roubos, violência sexual, sequestros…. Perdemos a capacidade de nos indignar com a violência, porque ela está perto de nós. Sendo assim, a violência que é presente em todas as áreas do país, no futebol, é apenas um grãozinho de areia, que parece não fazer diferença alguma. Mas tem de começar por algum lugar.
A violência só é combatida com a paz. Infelizmente, no mundo de hoje, a paz parece ser conquistada apenas na marra. Torcedores brigam e tiram a vida de outros, simplesmente por saberem que dificilmente sofrerão consequências. As consequências têm de vir, não porquê vidas são tiradas em nome de clube A ou B, por jogador de clube E ou X ser ferido e impedido de exercer sua profissão, têm de vir porquê pessoas morreram e outras pessoas se feriram, o futebol é apenas a desculpa, o futebol é apenas uma cortina, o futebol é apenas um lugar onde as pessoas acham que têm “imunidade” por estarem “defendendo a honra de seu clube”, quando resolvem digladiar contra outras pessoas, só porquê vestem outras cores.
Ainda criança, no meu primeiro jogo no Mineirão, duas torcidas organizadas do Atlético se confrontaram. Logo após pela primeiras vez pôr meus olhos no estádio que tenho como minha segunda casa, me via escondido atrás de uma barraca de pão com pernil, em frente ao famoso posto onde a torcida do Galo se concentra antes dos jogos. Desde a primeira vez que fui ao estádio, convivo com a ponta do receio em não ter certeza se volto para casa, pelo menos inteiro. Repito, era um jogo de torcida praticamente única, o Galo goleou a Caldense. Não me lembro quanto ficou o jogo, muito menos de quem foram os gols, mas nunca serei capaz de me esquecer a primeira vez que vi uma arma de fogo apontada para outra pessoa.
Meu amor pelo Atlético permite que eu continue indo aos estádios mais de 20 anos depois. Mas quantos meninos e meninas serão privados de irem exercer seu direito de empurrar o Atlético? Pior, quantas mais pessoas nunca mais poderão gritar pelo Atlético, pelo Cruzeiro, pelo Liverpool, pela Juventus, pelo Bahia, Náutico, Grêmio…?