92 anos do 9×2 – Uma história imortal e uma aula de Atlético
Por Betinho Marques
Neste dia 27 de novembro, completam-se 92 anos da épica goleada do Atlético sobre o Palestra Itália, atual Cruzeiro, pelo placar de 9×2. Maior goleada do clássico até hoje, este jogo diz muito sobre o Galo e carrega uma história rica em detalhes.
“Com mais alguns ataques do Athletico, termina o jogo, às 16h50, com o seguinte resultado: Athletico (9), Palestra (2)”. Jornal Minas Gerais em 29/11/1927
Em 2017, vasculhamos a Biblioteca Pública Estadual Luiz de Bessa e construímos relatos históricos no querido Camisa Doze, do meu amigo Fael Lima. No mesmo instante, no mesmo “rastro” e trocando conhecimento, o jornalista Guilherme Frossard completou com maestria histórias fantásticas deste feito que foi o 9X2. Ao final do texto disponibilizaremos alguns documentos e os links destas pesquisas (inclusive com recortes de jornais no fim da matéria). O contexto histórico, a política do café com leite, o período do Modernismo, o voto feminino. Cabe destacar que o texto e os conteúdos históricos foram mantidos em aspas com a grafia original da época, que era bastante influenciada pela língua inglesa dos jornais americanos. Não se assustem, o nosso Atlético tinha ‘h” na sua grafia. É muita história, amigos! São 92 anos do 9X2.
O Atlético já era um jovem de 19 anos de idade convicto de seu papel na sociedade. Após interromper a sequência de títulos do América (1916-1925) em 1926, o time seguia a batalha para obter o primeiro bicampeonato da sua história. Começava ali o enfraquecimento do América e o início da rivalidade entre alvinegros e celestes. No caminho enfrentaria o Palestra Itália, atual Cruzeiro. Nesse confronto histórico o Trio Maldito formado por três doutores (2 médicos e 1 advogado) Mário de Castro (2), Jairo (3) e Said (3) fazem 8 dos nove gols daquele domingo épico e Getúlio completou a goleada. Sim, a história foi feita por amadores, que precisavam ter outra profissão e se esconder para jogar futebol naquela época. O goleiro atleticano, Oswaldo Perigoso, também foi médico e referência internacional em dermatologia.
Oswaldo, o Perigoso
Como falamos anteriormente, o futebol na década de 20 era uma atividade não remunerada e os jogadores em grande proporção estudavam. Oswaldo, o arqueiro atleticano, além de guardar bem as traves do Atlético formou-se em Medicina e tornou-se referência em Dermatologia no Brasil. Além de escrever seu nome na história da maior goleada do clássico mineiro, Oswaldo foi reverenciado como aluno notável da UFMG e integrou a primeira turma do Corpo Docente da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais.
Perigoso jogou entre 1926 e 1930, atuou por 49 partidas, venceu 39, empatou 4 vezes e perdeu apenas 6 vezes. Oswaldo descobriu uma doença genética dominante da pele (descobridor da acroceratoelastoidose). Foi considerado o maior dermatologista das Américas de seu tempo, segundo a lista de notáveis da Faculdade de Medicina da UFMG. Assim como o Atlético, o número 1 atleticano era literalmente pioneiro em todas as suas competências.
O Trio Maldito e seus protagonistas – O jornal Correio Mineiro de forma objetiva em 29/11/1927 descreveu o Trio Maldito: ” Said, Mário e Jairo assombraram”
Orion ou Mário?
Talvez ao ler a descrição do terceiro gol do “Athletico” pelo Diário da Manhã com os dizeres: “Com nova sahida do Palestra, o jogo esteve algum tempo equilibrado, até que, às 4,39 Said fugindo pela direita, centrou bem para Orion receber e marcar o quarto gol do Athletico” alguns possam não identificar quem era o atacante de quem não se registra nada na história. Afinal, quem era o tal Orion?
Mário de Castro tinha como obrigação cursar medicina e sua mãe exigiu: “Ou a bola ou a escola”. Mário teve que jogar escondido e para fazê-lo ousou inverter seu nome de trás para frente. Contudo, a torcida mal entendia e em vez de Oriam, ficou o tal Orion. O Doutor da bola formou-se em Medicina, negou a Seleção Brasileira, não quis ir para a Copa do Uruguai em 1930, escolheu o Atlético e a medicina. Dono da maior média de gols do Atlético com 195 gols em 100 partidas, terceiro maior artilheiro do Galo, ORION fazia que não queria jogar, fazia-se de morto e no pestanejar vazava sempre as redes adversárias.
Said e as raízes árabes
Said Paulo Arges é um dos grandes pioneiros e responsáveis pela colonização de sírios na vida atleticana. Além de ser o sexto artilheiro da história do Atlético, contar um pouco de Said contribui para entender essa influência tão viva ainda nos corredores do clube. Mantendo a tradição de acolher todos os que estão às margens, os corredores da Sede de Lourdes ainda receberam recentemente refugiados da Síria. O Atlético é sem limites, ao preto e branco não há barreiras.
Voltando a Said, o jogador atuava pelo Sport Syrio Horizontino que foi extinto. Tido como “boa praça”, Said levou consigo toda colônia sírio-libanesa para apoiá-lo. Segundo Emir Cadar, conselheiro e cônsul da Síria em Belo Horizonte, Said foi o responsável por esse amor dos árabes de Belo Horizonte pelo Galo”, declarou ao Jornal Hoje em Dia.
Com 142 gols, Said, ao contrário de Mário e Jairo que fizeram Medicina, formou-se em Direito e devido ao amor ao futebol atrasou a formatura que se deu em 1942, dez anos após o início do curso. Campeão estadual por três vezes, atuava como atacante pela esquerda e deixou seu legado ao glorioso.
Jairo levou o Galo à Zona da Mata
Jairo, que nasceu em Muriaé, foi o cérebro do Trio Maldito. Além de construir jogadas com inteligência, o atacante abriu os caminhos do futebol mineiro à Zona da Mata. No período anterior ao seu futebol, a influência do futebol carioca fazia com que os times de Belo Horizonte ficassem em segundo plano.
O doutor da bola fez correr o estado a sua categoria e o Atlético conquistou apaixonados torcedores minimizando a discrepância das influências de outros estados do Sudeste. Formou-se em Medicina e atuou entre 1926 a 1933 fazendo 122 gols com a camisa atleticana.
Mercado Central antes do fígado com jiló foi palco do 9×2
Muitos podem não saber, mas antes do famoso fígado com jiló e antes mesmo do Mercado se tornar referência turística da capital mineira, os atleticanos devem se orgulhar e alegrar a cada vez que passar pelo Mercado Central. Foi ali, no primeiro estádio do América, o melhor e mais estruturado da época, com capacidade para cerca de 5.000 expectadores, localizado na Avenida Paraopeba, hoje Avenida Augusto de Lima, que o Atlético executou a sonora e maior goleada do confronto sobre o clube que sempre pleiteou ser seu maior rival.
Belo Horizonte, a primeira eleitora do Brasil e as mulheres no 9×2
“E finalmente amanhã, que os apreciadores do futeból vão apreciar uma boa partida entre os quadros dos clubs Athletico e Palestra, no campo deste. (…) A prova dos primeiros quadros (*) será às 15 horas em ponto. As senhoras e senhoritas não pagarão entradas” – publicou o “Correio Mineiro” no sábado, véspera do jogo.
Belo Horizonte era uma cidade em construção. A década de 20 remetia ainda aos reflexos da primeira grande guerra. Na música, Pixinguinha encantava com seu choro. O país respirava os ares do Modernismo, após o advento da Semana da Arte Moderna que quebrava conceitos e paradigmas.
O Brasil comemorava um grande passo para o sufrágio universal (voto de todos), Celina Guimarães Viana uma professora de Mossoró, cidade do interior do Rio Grande do Norte, teve seu nome incluído na lista de eleitores do Estado, fato ocorreu no dia 25/11/1927, dois dias antes da maior goleada atleticana sobre o mais novo postulante a rival. O Atlético que sempre teve desde Alice Neves sua torcida representada por mulheres, não podia se furtar a contextualizar esse momento histórico do país. Ressalta-se que o voto feminino foi, contudo, somente conquistado em 1932 com Getúlio Vargas no poder, após a decadência da política do café com leite (revezamento entre paulistas e mineiros no governo do país).
O período marcava uma afirmação feminina também na participação dos jogos de futebol, conforme destacado abaixo:
“O nosso mundo desportivo teve, anteontem, uma de suas melhores tardes, com o ‘match’ entre o Club Athletico Mineiro e a S. S. Palestra Italia, para a disputa da semi-final do campeonato da cidade. Jogo de grande responsabilidade para ambos os contendores, o encontro de domingo foi, como se esperava, muito renhido, apresentando lances de grande emoção. As archibancadas e logares adjacentes do ‘stadium’ do America F. C., onde se verificou a lueta, achavam-se repletos de ‘torcedoras’, salientando-se o elemento feminino, cuja ‘torcida’, commandada pelas senhoritas Nenem Alluoto e Horizontina Federiel, respectivamente, rainha e grã-duqueza dos sports de Bello Horizonte, foi das mais calorosas e enthusiasticas. Pela segunda vez, coube ao Club Athletico Mineiro, com o resultado da movimentada pugna de domingo, o título de campeão de Bello Horizonte”
Telegrama de reconhecimento da derrota
Em 29/11/1927, o Diário de Minas informou em sua nota esportiva os seguintes dizeres: “O Athletico vence brilhantemente o Palestra pela contagem de 9X2. ” Essa foi a abordagem do jornal sobre a vitória atleticana sobre o rival naquele dia.
Percebe-se claramente que todo o contexto e linguagem dos periódicos passam por termos rebuscados e com influências dos jornais americanos, inclusive, o Atlético da época era grafado com “h”. Para não restar dúvidas da veracidade do jogo, os registros da época relataram da seguinte forma o reconhecimento cruzeirense da façanha atleticana (vejam os recortes):
Após o “match” a diretoria do Palestra enviou um cordial reconhecimento de derrota e recebeu tão logo a resposta educada do presidente atleticano Leandro Castilho de Moura Costa, conforme registro do Diário de Minas (ver tira abaixo) de 29/11/1927: “A S.S Palestra Itália enviou, ante-hontem, à tarde, o seguinte telegrama ao presidente do C. Athletico Mineiro: < Dr. Moura Costa. Nome directoria felicito Athletico Mineiro brilhante victoria hoje. (a) Arcelus, secretário. Este despacho foi respondido com os seguintes termos: <Palestra Italia. Club Athletico Mineiro agradece gentileza tellegramma felicitações victoria.”
Jantar de comemoração
Vale ressaltar que não era hábito a circulação de jornais nas segundas-feiras, desta forma, a repercussão da vitória ocorreu só na terça-feira. Depois da grande vitória o Atlético, que ainda não era o Galo de Zé do Monte, comemorava o triunfo com o seguinte destaque dos periódicos:
“Terminando o jogo, a torcida do Athletico, entregou-se às mais expansivas manifestações (…) pela victoria do seu clube. Foram erguidos vivas ao Athletico, ao Dr. Leandro de Moura Costa, presidente do clube vencedor, e ao Correio Mineiro. Às 19 horas, no restaurante Guarany, foi offerecido um jantar aos vencedores do jogo de domingo, tomando parte na ágape aos 22 jogadores triumphadores, e Dr. Moura Costa, e varios athleticanos veteranos. O jantar decorreu em um ambiente de cordialidade, sendo trocados varios brindes” – concluiu a matéria extensa do “Correio Mineiro” sobre o campeão mineiro de 1927.
Mais destaques da imprensa
O Diário da Manhã, em 29/11/1927, descreveu a vitória atleticana da seguinte maneira:
“O Athletico, ante-hontem, obteve linda e facil victoria sobre o Palestra”. O subtítulo: “Depois de haverem resistido no primeiro tempo, os palestrinos deixaram-se abater fragarosamente”.
“Mais solido e articulado, não foi dificil ao Athletico abater o Palestra Italia, cujo team, além de aparecer integrado com dois elementos secundarios (reservas), desorientou-se por completo, empregando um jogo violento e prejudicial, que lhe valeu a derrota. O team preto e branco deve especialmente a victoria, à magnifica atuação de sua linha atacante, devendo-se accrescentar que tambem alguns jogadores do Palestra collaboraram nesse triumpho, pois tiveram uma marcação defeituosa e auxiliaram mal o ataque, à excepção do centro médio Osti, que, pelo menos, nesse particular, portou-se com alguma habilidade” – resume o “Diário da Manhã”.
Escalação: Athletico 9 x 2 Palestra
A escalação do Atlético, bicampeão mineiro de 1927, no 9×2 foi: Oswaldo Perigoso, Brant e Chiquinho; Franco, Ivo e Hugo; Getulio, Getulinho, Said, Mário de Castro e Jairo.
Cruzeiro (Palestra): Geraldo, Porfírio, Rizzo, Para-Raio, Nininho, Osti, Nani, Bengala, Piorra, Ninão e Armandinho.
“E sem mais nada digno de interesse, o juiz apitou, dando por fim o jogo, às 16h50, com o seguinte resultado: Athletico (9), Palestra (2) ”. Jornal Correio Mineiro em 29/11/1927